As Folias de Reis são tradições culturais de origem cristã da Europa. No Brasil, porém, ganharam vários elementos da diversidade religiosa. Parte significativa das Folias do Estado do Rio de Janeiro são centenárias e estão ativas em quase todas as cidades. Em Duque de Caxias, tem a jornada Reisado Flôr do Oriente, desde 1872, hoje comandada pelo mestre Rogério. Em Mesquita, a folia Sete Estrelas do Rosário de Maria, com data de fundação em 1874; e a Manjedoura da Mangueira, uma das mais antigas, fundada em 1855. Muitas folias deixaram de existir por diversos fatores. O Censo (IBGE, 2010), que traz um novo perfil de religiosidade predominante, aponta que os cristãos protestantes ultrapassaram o número de católicos na maioria das cidades do estado fluminense. E esse segmento religioso, proíbe a participação dos seus fiéis nas folias, identificando a manifestação de tradição cultural como uma “coisa do demônio”. Alguns palhaços que pediram para não ser identificados, já convertidos, dizem que, durante o período natalino, se afastam da congregação, saem na jornada e depois retornam à igreja. “Certa vez estávamos no culto, quando ouvimos o toque do tarol, do reco-reco e do pandeiro, começamos a dançar espontaneamente. Pedimos licença ao pastor e só retornamos à igreja após o São Sebastião” (depoimento dos palhaços Cana Brava e Pelourinho – pseudônimos).
Considerando o fato de que o segmento de tradição cultural se ressente de políticas públicas i voltadas a atender demandas mínimas, a falta de investimentos faz com que grupos de jovens compro metidos ideologicamente com o universo das folias organizem apresentações batendo latas e panelas d forma improvisada, o que impacta negativamente n imagem desses grupos na vida contemporânea. Um, outro fator que interfere diretamente na disseminação dessa cultura é a violência nas comunidades conflagradas, porque impede a circulação dos grupos pelos diferentes territórios.

Mesmo assim, são muitos os exemplos de resistência cultural que se fazem presentes. A Folia Irmandade Estrela Luminosa (Nova Iguaçu), que foi comandada e fundada por Nestor Leal em 1970 e passou a bandeira para Jorge Oliveira (mestre Sabará), não poderia dimensionar que o menino Carlos Alberto de Oliveira. que nasceu de parto natural em casa, visitado pela folia um dia após o seu nascimento em 20/01/1985, viria a ser, anos depois. o novo comandante da jornada. Após o período de luto, em decorrência da morte do sr. Jorge Sabará. seu pai em 2016. e de muitas outras dificuldades estruturais. a folia deu a volta por ama e. com o Mestre Nego Sabará, ganhou as ruas do Estado do Rio de Janeiro a partir de 2021 formada em sua grande maioria por jovens. Através de oficinas realizadas pelo mestre Nego, os novos integrantes aprenderam a tocar os instrumentos; a criar e interpretar as cantorias e orações; a fazer a chula; e chegam a 2022 produzindo encantamento cumprindo a sua jornada promovendo conforto e a boa nova aos devotos. Assim, num universo de folias centenárias, se consolidou uma jovem folia em pleno século XXI, saída de uma área muito carente, com um forte potencial e um singular sentimento de pertencimento.
Na maioria das vezes, a jornada incentivada. sobretudo, por familiares dos mestres que compõem o coletivo e dão continuidade á tradição. Gidalto (Mestre Gigante) diz que sua esposa é sua parceira na folia – após ser curada de um câncer, assumiu a função de bandeireira. A jornada Estrela do Oriente de Lages/Paracambi, desde 1987 estava na responsabilidade do Mestre Mauro (Mestre Tesourinha, que sempre teve a ajuda da esposa e da sogra). Com a morte de Mauro, hoje quem toca a folia é o Mestre Pipoca (Lamonier), que também tem sua folia no bairro Kaonze (Nova Iguaçu).
O Mestre Joãozinho, da Folia Estrela do Oriente do Carmary, em Nova Iguaçu, diz que começou por intermédio do tio que montou a folia junto a seu pai, no ano de 1970, quando ele tinha sete anos de idade e sua esposa Cléia sempre foi a sua principal incentivadora.

As Folias de Reis possuem ramificações em todo o Estado do Rio de Janeiro, tendo representantes na Capital, na Região das Lagos, na Região Serrana, no Vale do Café e na Baixada Fluminense. Sua jornada transcende uma simples peregrinação. É um ato de fé. Muitos dos seus membros cumprem, além da devoção, promessas, geralmente de sete anos, que fizeram por doenças curadas pelos Santos Reis em si próprios ou em entes queridos.
Simbolicamente a Jornada da Folia de Reis consiste na peregrinação dos três Reis Magos: Baltasar, Gaspar e Melchior, de Sabá, da Pérsia e da Babilônia, em busca da manjedoura do Menino Jesus. Essa peregrinação e conduzida pelo Mestre da folia que, segundo Marcelo, mestre da Jornada Estrela da Guia de Vassouras, tem a função de organizar o grupo, comandar e puxar as orações e cantorias. O Mestre e a autoridade maior, e quem dá as diretrizes e ainda mantêm a disciplina.
Inicialmente os grupos saem no dia 24 de dezembro e vão às casas dos devotos para levar as mensagens de boa nova, com orações e cantorias, até o dia 06 de janeiro. Porém, no Estado do Rio de Janeiro, diversos grupos, mesmo fora da capital, estendem a jornada até o dia 20 de janeiro, dia de São Sebastião. A partir dessa data, as folias só se encontram para as festas chamadas de arremate, onde diversos grupos reúnem-se para festejar, tendo como um dos principais motivos o aniversário do grupo.

A grande maioria dos grupos de Folias de Reis no Estado do Rio de Janeiro, apesar da tradição católica, possuem entre seus membros adeptos de todas as religiosidades, inclusive evangélicos e de matriz africana. Segundo o Babalorixá Marcelo, da folia Sempre Viva do Oriente, do Mestre Felipe, fundada há mais de 50 anos, com sede no terreiro Ile Asé Oju Aiye, no bairro Ipiranga, em Nova Iguaçu, os terreiros estão sempre abertos a receber as folias porque são mensageiras de paz. Os palhaços Manhoso e Manhosinho da mesma folia, dizem que as folias também prestam honras a Oxossi, por ser o rei do campo e por- já existir bem antes do menino Jesus nascer. O palhaço Mulatim, da folia Estrela do Oriente II, de Itaboraí, diz que é umbandista com muito orgulho, porém a folia é católica e quando visita os devotos e leva alegria, não está fazendo favor, está sendo grato a Deus – “uma outra história que não se conta e que o palhaços que simbolizam os soldados do Rei Herodes, se converteram a Jesus Cristo e eu sou esse soldado umbandista que tenho Cristo como guia” (Palhaço Mulatim). Para ele, a intolerância religiosa cresceu muito no Estado do Rio de janeiro e as pessoas precisam tirar o Rei Herodes de si para deixar de perseguir a religião dos outros, só assim encontrarão o menino Jesus. Neste sentido, o palhaço Pimenta concorda e afirma que nos fundamentos da palhaçaria de reis, do livro “O Mártir do Gólgota, de Henrique Perez Escrich (1966), é feita a revelação de um mascarado que distrai os soldados do Rei Herodes para que eles não encontrem Jesus Cristo.
A versão mais recorrente e que os palhaços da folia simbolizam os soldados de Herodes que estão à procura do menino Deus para matá-lo. Eles geralmente se vestem de macacão com retalhos de diversas cores, carregam um cajado /porrete e usam máscaras com figuras demoníacas para representar o mal. Em suas apresentações, aproveitam o momento para mostrar as suas habilidades com acrobacias durante a “chula”.
A chula é uma apresentação feita por palhaços, uma atividade que, além do malabarismo, apresenta recital de poesias, com versos definidos ou improvisos. Os palhaços desenvolvem temas de seu interesse e durante alguns minutos presenteiam o público com suas rimas e meneios. Durante a jornada eles não podem se posicionar à frente da Bandeira.

As Bandeiras/Estandarte são um símbolo de grande importância na folia, elas exorcizam os demônios e as forças do mal. São entregues ao dono da casa visitada, nelas poderão constar as imagens juntas ou separadas da Sagrada Família, São Sebastião e o Menino Jesus. Ela é carregada pelo bandereiro e acompanhada, de um lado pelo mestre e do outro pelo contramestre.
Na versão mais contemporânea das folias, as bandeiras ganharam inovações tecnológicas com painéis de “led” que as identificam de longe. As bandeiras também são usadas pelo mestre na abertura e no fechamento da folia, quando os palhaços, de joelhos, chegam até ela em sinal de reverência e, em sinal da cruz, quando posicionadas sobre as cabeças e as costas, a jornada termina.
As Folias de Reis são um valioso patrimônio imaterial da tradição cultural brasileira que resiste e atua proativamente no Rio de Janeiro desde o Brasil Império. Apesar dos inúmeros casos de perseguição por intolerância religiosa continuarem, os foliões persistem, resistem com dignidade e comprometimento. Para o palhaço Ganso, da Jornada Estrela Guia, “os pobres e trabalhadores são o Menino Jesus, o Herodes está lá em cima. A polícia que mata inocentes são os soldados; e os Reis Magos são os que ajudam as pessoas“.
A grande capacidade de adaptação do povo brasileiro trouxe para estes grupos presentes nas periferias da Região Metropolitana do Rio de Janeiro as riquezas da cultura local, agregando em suas manifestações componentes de diversos credos religiosos, o que contribui para fortalecer e afirmar a pluralidade cultural do Estado do Rio de Janeiro, que precisa respeitar as diferenças e atuar para a busca constante da paz.
Por: Geraldo Bastos
*Doutor em Psicossociologia/UFRJ – Resistências Negras e Violências de Estado – Gerente na ONG Se Essa Rua Fosse Minha- Projeto Cultura na Faixa.




